sábado, 29 de janeiro de 2011

LULA O FILHO DA DIALÉTICA

Lula, o filho da dialética

não é e nunca foi um revolucionário que quer fazer a História dar saltos, mas um visionário que quer empurrá-la aos pouco. É a personificação da síntese entre contrários na visão dialética: é a negação da negação, a continuação da política por meio da política. Não o confundam, porém, com o estereótipo do político mineiro tradicional: o político mineiro é um protótipo do príncipe de Lampeduza, que quer mudar para que as coisas continuem como estão. Lula quer efetivamente mudar, e, no seu jeito de fazer composição, arranca compromissos aos poucos, sem ruptura. O artigo é de J. Carlos de Assis.

J. Carlos de Assis*

O que há de comum entre a dialética marxista e o princípio milenar de Lao Tsé segundo o qual não se deve remar contra a corrente, mas usar sua força a seu favor? Tudo. É essencialmente o mesmo princípio. O que me impediu durante décadas de ver isso foi uma leitura superficial de Marx. Ou melhor, uma leitura de Marx que não considerava os fundamentos mais profundos de sua própria dialética no plano filosófico, ainda hoje insuperável, pela razão de que ela está recoberta por uma dialética política impressionista que se revelou idealista e fracassada.

Nenhum político brasileiro, e poucos no mundo, se revelaram melhores discípulos de Lao Tsé do que Luís Inácio Lula da Silva. Mas Lula é também um produto genuíno da dialética marxista. Para Marx, a história avança como resultado de conflitos entre forças materiais polares (para seu inspirador, Hegel, eram as forças de idéias polares), sendo uma conservadora, outra progressista, e de cujo embate sempre resulta a superação de ambas num nível superior. Em seu aspecto formal, trata-se da interação real entre tese, antítese e síntese.

Superação não significa domínio da antítese sobre a tese. Significa a interação de ambas numa síntese que contém elementos próprios de cada uma delas, porém numa direção nova. A grande novidade da dialética marxista, em relação a Hegel, é que ela coloca o conflito histórico recorrente no nível das forças materiais, e não no campo exclusivo das idéias. Isso não chega a ser contraditório em relação à dialética política marxista, a qual, confiada no conhecimento humano dos determinantes de sua própria história, entendeu possível ser eliminado o conflito de classes pelo domínio absoluto de uma classe, os trabalhadores, sobre a outra, os burgueses.

A razão dessa extrapolação política é em si mesma simples: se a dialética formal exige que, no conflito entre tese e antítese, a síntese que o supere guarde elementos de ambos, o que se guarda do capitalismo na construção do comunismo pela liquidação da burguesia não são elementos das complexas relações sociais por esta criada, mas sua característica material fundamental: o espetacular desenvolvimento das forças produtivas realizado pelo capitalismo, exaltado inclusive pelo Manifesto Comunista de 48. Este seria herdado e apropriado pelos comunistas. Concilia-se assim dialética formal com dialética política, na medida em que esta rejeita a superação do conflito mediante interação das classes em favor da idéia de eliminação, no comunismo, não só da classe burguesa, mas de todas as classes.

Marx não chegou a ser muito preciso a respeito do que pensava ser a marcha da história depois do comunismo. Em geral, confiava num processo de emulação (não de competição) entre trabalhadores, estes em condições sociais iguais, para produzir o progresso tecnológico numa sociedade sem classes. Idealismo puro. Num certo sentido seria o fim da História tal como a conhecemos, ou seja, como um processo dialético, ou de conflitos. Mais de um século mais tarde, um pensador norte-americano, Francis Fukuyama, também achou que estávamos ao ponto de chegar ao fim da História, porém mediante um processo dialeticamente inverso: pelo predomínio absoluto do neoliberalismo e a eliminação do reformismo social tradicionalmente perseguido pelas esquerdas.

Vimos ao longo do século XX e neste início do XXI que os processos históricos são bem mais complexos, não obstante a validade formal da dialética marxista e hegeliana: a limitada burguesia capitalista e a ampla classe dominante feudal, numa área remota e pouco desenvolvida do mundo, a Rússia, foi liquidada por um golpe de um punhado de trabalhadores e uma multidão de camponeses liderados por intelectuais, mas disso não resultou o fim das classes. Resultou, sim, na lenta criação de uma nomenclatura privilegiada em face de massas subjugadas, trucidadas e amordaçadas, não obstante algum progresso material inicial.

Na China, outra área remota de camponeses, a revolução comunista triunfante só se estabilizou e colocou o país na trilha do desenvolvimento após a consolidação de uma elite dominante tecnocrática que tem características mais próximas do antigo mandarinato do que do mundo burguês ocidental. Nesses dois grandes países, a tese não era o capitalismo, mas algo próximo do feudalismo; a antítese, depois do interregno caótico comunista, está sendo o próprio capitalismo liberal importado, embora com elementos sociais. A síntese, não revolucionária, está em processo. É como se a história tivesse feito um desvio geográfico, o equivalente de um epiciclo planetário no sistema cosmológico de Ptolomeu. Na era nuclear, a guerra, anteriormente o fato supremo da Geopolítica, já não pode ser, como havia afirmado Clausewitz, a continuação da política por outros meios: o adversário não pode ser destruído sem uma simultânea autodestruição, mas, sim, absorvido num processo de negociação e de composição sem derrotados definitivos.

O que aconteceu ao longo desse período no Ocidente, berço da dialética, do capitalismo, do comunismo e da Geopolítica de Clausewitz? Aconteceu o curso da dialética real, traçando um rumo da história que se revelaria também o mais próximo do princípio de Lao Tsé: à sombra do conflito de idéias e de interesses entre capitalismo liberal e socialismo real, debaixo do medo do comunismo soviético e dos comunistas internos, um grupo de nações européias, liderado pelos nórdicos, promoveu a síntese social democrata, com elementos aproveitados dos dois sistemas em conflito, porém superando-os. De um lado, o respeito à propriedade privada e o prêmio pelo esforço, pela inovação e pela competência; de outro, os programas sociais promovidos pelo Estado a partir de uma pressão crescente por igualdade de oportunidades sobre a renda nacional, porém de caráter não revolucionário, através da expansão dos orçamentos públicos pela força da cidadania ampliada.

O conflito geopolítico entre as potências hegemônicas antagônicas, Estados Unidos e União Soviética, à sombra do terror nuclear, dominou a segunda metade do Século XX e de certa forma obscureceu as nuances do modelo social democrata europeu na sua fase de construção e de consolidação. É da natureza de qualquer conflito político a radicalização. Acontece que, na era nuclear, a radicalização política tinha e tem limites: os falcões norte-americanos não podiam colocar em prática seus propósitos de levar a União Soviética à rendição por meios militares, assim como permaneceu como letra morta o artigo do programa do PCUS de destruir o capitalismo e o imperialismo (norte-americano). Entretanto, uma retórica estridente num plano impraticável não deixa de produzir resultados mobilizadores na base.

No plano da ideologia, da propaganda e da imprensa engajada do pólo norte-americano, toda pessoa com preocupações sociais era taxada de comunista; com isso, nos Estados Unidos, tendo por epifenômeno a caça às bruxas do Senador McCarthy nos anos 50, o progresso social a partir do Estado seria lento. Mais do que isso, sob a vasta área de influência norte-americana do lado ocidental, se era possível a consolidação da social democracia no norte da Europa, tornou-se bem mais difícil importar esse modelo pelos países atrasados ou, como se diz hoje, em desenvolvimento. Uma das razões, talvez entre as principais, era de natureza contraditória, e inequivocamente ideológica: os comunistas não queriam reformas, queriam revoluções. Nisso, acabavam como aliados efetivos dos conservadores que também não queriam reformas.

A Europa teve mais sorte. Dois marxistas geniais, Eduard Bernstein e Karl Kautsky, se deram conta no começo do século XX de que entre a classe burguesa e a classe operária o movimento real da história, num curso bem diferente do previsto por Marx, estava produzindo relações sociais complexas na forma de classes médias cada vez mais amplas, com interesses próprios diferenciados das outras duas. Foram acusados de renegados e expurgados do marxismo oficial. Não obstante, foram eles que abriram as portas para o reconhecimento de uma síntese social democrata no plano teórico. Foi graças a ideólogos como eles que a pequena Suécia não caiu na armadilha da luta ideológica radical, fundando efetivamente a social democracia ainda nos anos 20.

Nós não tivemos a mesma sorte. O máximo de acomodação que nossos ideólogos de esquerda conseguiram produzir no espaço entre os dois pólos ideológicos foi o conceito de revolução nacional burguesa, num momento em que o capitalismo de fora para dentro já se estava tornando internacional e o capitalismo de dentro para fora conquistava boas oportunidades associando-se com o externo, ambos contribuindo para expandir os limites das incipientes classes médias. Fernando Henrique Cardoso elaborou o conceito com um trejeito de neutralidade acadêmica, expurgando-o do apelo revolucionário. Sua teoria da dependência é a teoria do desenvolvimento capitalista subordinado, por cima das relações sociais concretas internas, o que tentou levar à prática em sua Presidência. Certamente foi mais realista que os ideólogos revolucionários comunistas. Mas não correspondeu ao Brasil real, ou às forças sociais reais que prevalecem no Brasil desde os anos 90.

O quadro mais complexo do Brasil contemporâneo está retratado na Constituição original de 88. Foi essa Constituição, renegada inicialmente pelos parlamentares do PT e colocada sob suspeita pelos conservadores, que gerou Lula, sendo que Lula esteve no centro dos acontecimentos sociais e políticos que geraram a abertura política na ditadura, e a própria Constituinte de que seria uma consequência. Isso é dialética no mundo real, não no plano das idéias. O sentido mais profundo da Constituição é que ela refletia, ou aparentava refletir, uma força política que correspondia a uma efetiva democracia de cidadania ampliada. O fato político mais decisivo rumo à ampliação da cidadania foram as históricas greves de 1978, 79 e 80, em confronto direto com as restrições do governo autoritário. Lula foi o líder inconteste dos trabalhadores organizados nessa greve, e a aura do sucesso lhe abriu o caminho para que, transcendendo o sindicalismo, acabasse sendo o grande líder das massas indiferenciadas que acabou sendo: os pobres eternamente relegados a segundo plano pelo orçamento público no Brasil. Esses pobres, inclusive analfabetos, viram reconhecida sua cidadania na Constituição de 88, além de amplos direitos sociais. Os conservadores só tiveram tempo de espantar-se diante do novo quadro político, e preparar uma contra-ofensiva, através da recorrente pregação posterior de reformas liberais.

No início Lula foi celebrado como um herói contra a ditadura. Como boa parte das classes médias estava contra a ditadura, seja por razões ideológicas, seja por sentimentos democráticos genuínos, é possível que ele no início tenha tido relativamente mais apoio nas classes médias pelo que parecia ser, e menos apoio das classes subalternas pelo que ainda não era. Isso se reflete nas várias eleições presidenciais que disputou e perdeu, antes da vitória em 2002. O partido que construiu era um curioso ajuntamento de sindicalistas, intelectuais e católicos progressistas, com um poder de atração considerável sobre a juventude, dada a inclinação natural desta para uma espécie de veneração romântica da classe trabalhadora (o que, em outro tempo, era um grande fator de recrutamento de quadros pelos PCs).

Sabemos que a Constituição de 88 não foi plenamente aplicada. Aliás, em várias partes e em momentos posteriores ela foi de fato estuprada, desde o Governo Collor ao Governo Fernando Henrique. Qual a razão disso, à luz da dialética? A razão é que os avanços nela inscritos não correspondiam a uma expressão genuína do jogo de poder entre forças sociais reais, mas a uma concessão romântica de forças políticas progressistas, que detiveram por um momento o poder parlamentar, mas não o poder real. Este estava nas mãos dos conservadores que iniciaram o movimento anti-progressista ainda com o Centrão e iriam aprofundá-lo com o movimento de desestatização, privatização e corte de direitos sociais nos anos posteriores.

Estes foram anos em que o Brasil, tradicionalmente sujeito à influência de ideologias externas, sucumbiu à avalanche neoliberal em progresso no mundo. Já antes da desarticulação da União Soviética o socialismo real se desmoralizava mundialmente como conseqüência da falta de liberdade individual e de fracassos no plano material, desde o atraso tecnológico a ondas de desastres agrícolas. Depois da desarticulação, comunistas brasileiros e simpatizantes do socialismo viram-se sem referência política. Não era uma característica exclusiva nossa. Os tradicionais partidos de esquerda europeus, e o próprio Partido Democrata norte-americano, também sucumbiram. Não estranha que Fukuyama tenha, nesse contexto, vislumbrado o fim da História.

O Governo do intelectual Fernando Henrique foi o reflexo medíocre desse processo: passará à História como um apêndice irrelevante do neoliberalismo europeu e norte-americano. Foi a crise financeira de fins dos anos 90, coroando anos seguidos de virtual estagnação econômica, que apontou a fragilidade do modelo neoliberal adaptado a condições brasileiras. O relaxamento das certezas políticas em torno dele, que abalou parte das próprias classes dominantes, abriu espaço para que emergissem demandas de baixo para cima com potencial de influir no processo político. Lula ocupou esse espaço, porém com uma extraordinária habilidade instintiva para construir uma alternativa entre radicalismos de esquerda e de direita.

Poderia ter sido feito de outra forma? O início do primeiro Governo Lula foi decepcionante para a maioria dos progressistas, inclusive para mim. De saída, ele trouxe para o núcleo central da política econômica um presidente do Banco Central extraído do próprio sistema neoliberal. Acrescentou-se a isso, pela mão de um Ministro da Fazenda convertido à ortodoxia econômica, um compromisso explícito com uma política fiscal restritiva, igualmente a pleno gosto dos neoliberais. Em face de uma taxa de desemprego alarmante, esses movimentos na política econômica poderiam ser justificadamente considerados concessões excessivas à direita e uma traição à maioria do povo que o elegeu. Por cima de tudo, a política social oscilava num plano ainda indefinido.

Em contrapartida, o quadro herdado do Governo anterior era, por sua vez, de extrema complexidade. A despeito de uma taxa de juros básica elevada, a inflação tinha disparado. As reservas cambiais minguavam. Uma especulação desenfreada havia provocado uma explosão da taxa de câmbio. As expectativas empresariais eram sombrias em relação às iniciativas do primeiro partido de esquerda que chegava ao poder no Brasil. Diante disso, a presença de José Alencar, um grande empresário, no cargo de Vice Presidente, era um hábil expediente político, porém não necessariamente efetivo (acabou sendo).

Então aconteceu o imprevisível: os ventos internacionais começaram a soprar a favor. O boom da economia mundial e sobretudo da China puxou para níveis até então inimagináveis as quantidades exportadas e os preços das commodities vendidas pelo Brasil, possibilitando o início de um processo de rápida acumulação de reservas externas; a taxa de câmbio tinha atingido níveis tão altos (quase R$ 4,00) que, mesmo com sua progressiva redução por força do aumento da taxa de juros, subiram também as exportações de manufaturados, em face do ambiente externo igualmente favorável; por efeito da melhora do quadro externo, o mercado interno começou a reagir, inclusive com moderada recuperação do emprego, ao ponto de que, em 2004, o Banco Central se sentiu no direito de dar uma travada na economia para supostamente combater pressões inflacionárias. O resto é conhecido: recuo em 2005 e nova retomada, desta vez mais consistente, a partir de 2006. E uma firme virada política na direção do atendimento às aspirações dos mais pobres e das políticas sociais universais a partir de 2004.

Imagine-se um caminho diferente: Lula teria composto um Ministério econômico mais progressista e implementado políticas mais populares desde a saída. Seria um confronto direto com as classes dominantes conservadoras. No passado, estas tinham o Exército a seu favor, e reagiriam pelo recurso tradicional de um golpe. Agora, dispõem de forças igualmente poderosas: uma parte considerável da grande mídia que forma a opinião pública – muitas vezes em contradição com os interesses reais desta última.

Vimos, pela eleição de Dilma, que a grande mídia tem um poder construtivo limitado: a seu gosto, teria sido eleito Serra. Contudo, seu poder destrutivo não pode ser subestimado. Para o bem ou para o mal, ela destruiu o governo militar, desmoralizou o Plano Cruzado e a moratória do Governo Sarney, promoveu o impeachment de Collor, desestruturou o PT no mensalão. Não fora a força carismática imbatível de Lula, e sua empatia com o povo, além dos meios de informação mais democratizados da internet, e ele e sua sucessão seriam igualmente destruídos pela mídia. Imagine, pois, uma situação de crise geral do país, como anteriormente assinalada, em que um governo inexperiente de esquerda começasse a tomar medidas contra os interesses da classe dominante, muito especialmente os interesses do estamento financeiro entrelaçados com preconceitos ideológicos das classes médias, e que têm as maiores contas de publicidade: seria simplesmente massacrado e desestabilizado pela mídia, inclusive em face da contribuição eventual de petistas tão embriagados pelo poder que fossem capazes de produzir algo tão moralmente repugnante como um mensalão na órbita do palácio!

É claro que a especulação sobre o que poderia ter acontecido se Lula tivesse tentado fazer um governo puro de esquerda (o que é exatamente isso?) é perfunctória, depois do fato consumado. Entretanto, o caminho seguido é uma lição de história... e de dialética, ou da aplicação prática da doutrina de Lao Tsé. Estranho que, quem a tenha dado, seja um torneiro mecânico treinado apenas no sindicalismo, sucessor de quem era considerado um dos mais brilhantes intelectuais brasileiros. Contudo, talvez seja essa a explicação. Lula nunca pregou a destruição do capitalismo. Nas greves históricas que promoveu, era sobretudo um negociador de aumentos salariais. E em geral sabia até onde poderia ir em termos de reivindicações para não inviabilizar a empresa e destruir a fonte de emprego do próprio trabalhador.

Testemunhei isso. Em 1978, eu era subeditor de Economia do “Jornal do Brasil” e fui indicado pelo editor, Paulo Henrique Amorim, para coordenar as edições das greves do ABC. Na época o “Jornal do Brasil” era o principal formador de opinião brasileiro e o fato de ter aberto duas páginas diárias para as greves foi decisivo para sua repercussão em nível nacional, já que a conservadora imprensa paulista praticamente se omitiu no início delas.

Terminadas 40 dias de greves, fui a São Bernardo para conhecer pessoalmente Lula. Estive com ele um dia inteiro. Entre os relatos que me fez, lembro-me de um sobre uma fábrica de uns 400 empregados que haviam parado e o chamado para negociar o aumento. Queriam 20%. Lula negociou, e obteve o acordo. Duas semanas depois, os operários entraram em greve de novo. Queriam mais 20%. O dono da fábrica desesperou-se. Não podia dar. Lula foi à fábrica e convenceu os empregados, em assembléia, a desistir do pedido.

Esse fato singelo antecipa o que Lula foi na Presidência da República: um hábil negociador e conciliador. Ele não é e nunca foi um revolucionário que quer fazer a História dar saltos, mas um visionário que quer empurrá-la aos pouco. É a personificação da síntese entre contrários na visão dialética: é a negação da negação, a continuação da política por meio da política. Não o confundam, porém, com o estereótipo do político mineiro tradicional: o político mineiro é um protótipo do príncipe de Lampeduza, que quer mudar para que as coisas continuem como estão. Lula quer efetivamente mudar, e, no seu jeito de fazer composição, arranca compromissos aos poucos, sem ruptura.

Por que, então, ele é tão odiado por uma fração das elites e das classes médias? É uma parte pequena da sociedade, mas com capacidade de vocalização. E é a clientela preferencial dos grandes jornais. Em geral, são privilegiados, e seus interesses básicos foram preservados no Governo Lula. Assim, seu ódio é de estrito fundo ideológico. É um reflexo tardio da doutrina neoliberal que, derrotada pelos fatos a partir da crise financeira iniciada em 2008, ainda não foi entendida como um fracasso retumbante no Brasil, em razão justamente da mediocridade ou da parcialidade de grande parte de nossa mídia. Diga-se, a bem da verdade, que o Ministério de Lula e de sua sucessora também guardaram e guardam resíduos neoliberais. Entretanto, a direção geral das políticas públicas tem um claro viés popular. Não é o ideal, mas o que talvez permitam as circunstâncias.

Isso se revelou sobretudo no enfrentamento da crise financeira mundial que eclodiu em 2008. Alguém deve ter dito a Lula que se tratava de uma marolinha, que o Brasil passaria ao largo dela. Entretanto, quando os fatos demonstraram o contrário, em especial em face de uma explosão no desemprego em dezembro de 2008, o Governo começou a mexer-se. E a medida a meu ver mais eficaz sequer podia ser interpretada como uma iniciativa conjuntural anticíclica. Foi o aumento real de 7% do salário mínimo, fruto de negociação anterior entre centrais sindicais e patronato sob condução de Lula.

O aumento do mínimo injetou uma soma considerável de recursos novos na economia pelo lado da demanda, o que, somado ao estabilizador automático do Bolsa Família e de outros programas sociais, parou a queda do produto e sustentou o início da retomada, estimulado também por reduções de tributos. Do lado da oferta, a principal iniciativa foi a transferência ao BNDES de R$ 100 bilhões (depois mais R$ 80 bilhões) diretamente do Tesouro, o que assegurou a sustentação e ampliação do investimento produtivo deficitário para fazer face à reativação de demanda que estava sendo estimulada. Se não foi possível evitar a queda do PIB em 2009, já no terceiro trimestre havia sinais claros da recuperação que se configuraria em 2010.

Evidentemente que haverá quem, de forma sincera, ache que Lula fez pouco. Isso suscita uma das recorrentes discussões teóricas em dialética: qual a margem de liberdade que o conflito entre interesses reais deixa para a decisão individual do líder? Sabemos que há margens de liberdade, mas sabemos também que, no processo político em andamento, o líder não sabe de antemão quais são. É justamente aí que entra sua inteligência, ou sua intuição. Depois do fato, e sobretudo depois que se sabe a reação do adversário, ou de suas conseqüências, é fácil dizer que haveria um caminho melhor. No fragor da luta, tudo depende de uma avaliação que nem sempre está no campo racional, mas sim no da intuição.

Entre o primeiro e o segundo mandato, Lula poderia ter mandado o presidente do Banco Central para casa. Era o principal empecilho a um crescimento brasileiro mais vigoroso. Talvez ele o fizesse, não fosse a eclosão do mensalão, que o deixou muito fragilizado politicamente. Poderia também ter recorrido a uma política fiscal efetivamente desenvolvimentista, forçando a redução dos juros e por aí liberando recursos fiscais para investimentos produtivos, como queria José Alencar. Não o fez, talvez temendo a reação da mídia. E isso, como dito, não é de subestimar: duas medidas importantíssimas do segundo Governo, a liberação do controle fiscal sobre os investimentos da Eletrobrás, e a capitalização da Petrobrás com reservas do pré-sal, foram recebidas com uma avalanche impressionante de críticas, não obstante sua importância vital para o desenvolvimento brasileiro.

No balanço geral, Lula fez um governo bom para todo mundo, o que se refletiu com justiça nas pesquisas de opinião. Poderia, aliás, inverter a frase: como mostram as pesquisas de opinião, Lula fez um governo bom para todo mundo. Só os obstinados radicais de oposição podem questionar isso. O que se pode tentar fazer é explicar esse fenômeno racionalmente. Talvez nem seja racional. Lembro-me que, no início da crise do mensalão, e amargando uma queda de popularidade que vinha desde antes, Lula deu a uma repórter de tevê amadora uma entrevista em Paris. Foi uma coisa patética, num ambiente patético, e com uma aparência patética. Entre outras coisas, disse que quem está no quarto andar do palácio (Planalto) não sabe o que acontece no terceiro, e que foi traído por alguns companheiros. Assisti à entrevista e fiquei perplexo. Lula parecia destruído.

A partir dali, nas semanas seguintes, a credibilidade de Lula começou a subir. Subiu até ganhar a reeleição. A única explicação é que o povo se apiedou dele, de seu isolamento, visível naquela entrevista improvisada, e se identificou ainda mais com o homem do povo que chegou ao poder e que estava sendo atacado impiedosamente pelas elites dominantes.

Critiquei muito a política econômica do Governo Lula no primeiro mandato. Não tenho muitos motivos hoje para mudar de opinião, mesmo em relação ao segundo mandato. Entretanto, como disse uma vez Alencar, “fizemos tudo errado mas deu tudo certo”. Examinando o passado e sondando o futuro, Delfim Netto disse a mesma coisa, com outras palavras: “Lula teve vento a favor, Dilma terá vento contra”. Em qualquer hipótese, a marca das políticas sociais de Lula ficará gravada para sempre na História do Brasil. Dificilmente se poderá recuar delas, sobretudo depois que ele fez sua sucessora. Isso não compensa exatamente a política econômica conservadora, mas é muito mais que simples populismo porque tem a força de criação de direitos ancorados na democracia de cidadania ampliada.

Em certo momento do primeiro mandato de Lula, estava tão indignado, como disse, com sua política econômica que encerrei um ensaio com uma paródia mais ou menos assim: “Lula, como Moisés, levou seu povo até a beira da Terra Prometida. Mas diferente de Moisés, que não entrou nela, Lula entrou sozinho”. Esse juízo se revelaria, com o tempo, um dos mais injustos que fiz em mais de 40 anos de jornalismo. Acho hoje que um pedaço do Brasil, justamente o dos mais desassistidos desde a escravatura, recebeu de Lula uma oportunidade para entrar na Terra Prometida. Afinal, o que prometeu em suas campanhas, de modo mais enfático, não foi mudar a política econômica. Foi ver dois pratos de comida, por dia, na mesa de cada brasileiro.

Por isso vejo Lula como o filho da dialética. Em escala, é um modelo reduzido, embora eloqüente, do futuro do mundo. Esse futuro não será uma volta pura e simples ao capitalismo liberal dos Estados Unidos, ainda a potência econômica dominante, nem o avanço em direção ao modelo de capitalismo sem liberdade da China, a potência emergente. Será uma superação de ambos. Algum forma política que combine liberdade empresarial e liberdade individual, e alguma forma econômica que combine estímulo ao empreendedorismo privado e maior regulação estatal.

(*) Economista, doutor pela Coppe/UFRJ, professor de Economia Internacional na UEPB.

o jogo de Barack Obama

O grande jogo de Barack Obama

O grande jogo proposto pelo governo Obama, para o mundo pós-Iraque e pós-Afeganistão, aponta na mesma direção da década de 1970, só que com o sinal trocado. Agora se trata de uma proposta de aliança estratégica com a Rússia, que bloquearia a expansão chinesa na Ásia, mas que também envolverá algum tipo de apoio ou “convite” ao desenvolvimento do capitalismo russo, bloqueado pelo seu excessivo viés “primário-exportadora”. O projeto de Obama pode revolucionar a geopolítica mundial, mas também pode ser atropelado – entre outras coisas - pelas eleições presidenciais que ocorrerão nos EUA e na Rússia, em 2012. O artigo é de José Luís Fiori.

José Luís Fiori

Nos últimos dois meses de 2010, o presidente Barack Obama tomou decisões e obteve vitórias internacionais que poderão mudar radicalmente a geopolítica mundial do século XXI. Graças à intervenção direta do presidente americano, a reunião da OTAN, em Lisboa, no mês de novembro, conseguiu aprovar um “Novo Conceito Estratégico” que define as diretrizes da organização para os próximos dez anos, com a previsão de retirada de suas tropas do Afeganistão, até 2014, e com decisão de instalar um novo sistema de defesa antimísseis da Europa e dos EUA, com a possível inclusão da Rússia e da Turquia, apesar da resistência do governo turco a cooperar com os países que estão obstaculizando sua entrada na UE.

Esta vitória parcial do governo Obama, se somou à aprovação pelo Congresso americano, em dezembro, do acordo bilateral de controle de armas atômicas, que havia assinado com o presidente Dmitry Medvedev, no mês de abril, e que foi ratificado pelo parlamento russo, poucos dias depois de sua aprovação pelo Senado dos EUA. Estas iniciativas enterram definitivamente o projeto Bush de instalação de um escudo balístico na fronteira ocidental da Rússia, e aprofundam as relações entre as duas maiores potências atômicas mundiais, desautorizando a mobilização anti-russa dos países da Europa Central, promovida e liderada atualmente, pela Polônia e pela Suécia.

Neste mesmo período, no Oriente Médio, o presidente Obama aumentou sua pressão contrária à instalação de novas colônias israelenses em território palestino, e diminuiu a intensidade retórica de sua disputa atômica com o Irã, sinalizando de forma discreta, a disposição para um novo tipo de acomodação regional. Como ficou visível, com o acordo político que permitiu a formação do novo governo iraquiano do premier Nuri al Maliki, com a intervenção do Irã e com o apoio dos EUA, apesar de que Maliki não fosse o candidato preferido dos norte-americanos. E provavelmente, a crise atual do governo libanês só terá uma solução pacífica e duradoura, se envolver, de novo, um ajuste de posições e interesses entre os EUA e o Irã, mesmo que ele seja informal e não declarado.

Estas vitórias e decisões do governo Obama, estão apontando para uma nova política internacional dos EUA, de aproximação com a Rússia, e de acomodação negociada das crises sobrepostas, do Oriente Médio e da Ásia Central. No caso da aproximação da Rússia, os EUA contam com o apoio da Alemanha, por cima das resistências e das divergências intermináveis da UE, e se ela tiver sucesso, deverá redesenhar o mapa geopolítico da Europa moderna. Dentro da nova aliança, a Rússia colaboraria com a estabilização da Ásia Central, e ocuparia um lugar de destaque em uma negociação silenciosa – que já está em curso – envolvendo o Irã e a Turquia, por cima das alianças tradicionais dos EUA, dentro da região, com vistas a construção de um novo equilíbrio de poder, no Oriente Médio. Em compensação, a Rússia teria o apoio norte-americano para retomar sua “zona de influencia”, e reconstruir sua hegemonia nos territórios perdidos, depois da Guerra Fria, sem as armas, e pelo caminho do mercado e das pressões diplomáticas, como já vem ocorrendo neste momento.

Esta nova estratégia é ousada e de alto risco, mas não é original. No auge do seu poder, logo depois da II Guerra Mundial, os EUA perderam o controle da Europa Central para a URSS, em seguida perderam o controle da China, para a revolução comunista de Mao Tse Tung, e foram obrigados à um armistício inglório, na Guerra da Coréia. Como conseqüência, os EUA tiveram que mudar sua estratégia do imediato pós-guerra, e transformaram a Alemanha e o Japão, nas peças econômicas centrais da aliança em que se sustentou a sua posição durante a Guerra Fria. Duas décadas depois, em plena época de ouro do “capitalismo keynesiano”, os EUA voltaram a ser derrotados no Vietnã, Laos e Cambodja, e perderam o controle militar do sudeste asiático. E de novo mudaram sua política internacional, construindo uma aliança estratégica com a China, que dividiu o mundo socialista, fragilizou a URSS, e redesenhou a geopolítica e o capitalismo do final do século XX.

Deste ponto vista, o grande jogo proposto pelo governo Obama, para o mundo pós-Iraque e pós-Afeganistão, aponta na mesma direção da década de 1970, só que com o sinal trocado. Agora se trata de uma proposta de aliança estratégica com a Rússia, que bloquearia a expansão chinesa na Ásia, mas que também envolverá algum tipo de apoio ou “convite” ao desenvolvimento do capitalismo russo, bloqueado pelo seu excessivo viés “primário-exportadora”.

Roosevelt concebeu uma aliança parecida com a URSS, em 1945, mas sua proposta foi atropelada pela sua morte, e pela estratégia desenhada por Churchill e Truman, que levou à Guerra Fria. Agora de novo, o projeto de Barack Obama pode revolucionar a geopolítica mundial, mas também pode ser atropelado – entre outras coisas - pelas mudanças presidenciais que ocorrerão nos EUA e na Rússia, no ano de 2012.

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domingo, 23 de janeiro de 2011

O verdadeiro Gramsci: Revolucionário comunista - Portal Vermelho

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Há 120 anos, Martí lançava Nossa América defendendo integração - Portal Vermelho

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ARMADILHA DA CONJUNTURA

Renato Rabelo: Inflação, juros e a “armadilha da conjuntura"

Não é mais suficiente ficarmos numa grita única condenando aumentos sucessivos da taxa de juros. Infelizmente, as coisas passam a ter caráter anticientífico, de bem (“combate à inflação”) contra o mal (aumento de salário mínimo, “estouro da previdência”, “farra de gastos” etc).

Por Renato Rabelo, em seu blog

O que piora o quadro é o fato de a repetição de ações humanas (utilização do ferramental dos juros contra a inflação, por exemplo) ter-se transformado em lei quase objetiva do sistema. Num quadro desses, uma das únicas soluções é partirmos para o acirrado e necessário debate e combate de ideias.

Vejamos alguns exemplos. Impera uma “verdade estabelecida” de que o aumento do salário mínimo redundaria numa onda de pressão inflacionária. Ou mesmo a lógica pobre de que “crescimento gera inflação”. Qualquer análise que se baseie puramente na fotografia do presente irá corroborar essa tese.

Por outro lado, sabendo-se que a elevação da demanda dá-se em velocidade maior que a oferta e que somente no médio e longo prazos é que essa relação entre oferta e demanda tende a se estabilizar é que teremos condições de advogar – com base em ciência histórica – a necessidade de se enfrentar o tal problema da inflação não a partir de ilações conjunturais e sim como parte de um todo que envolve o alargamento da base de oferta partindo do pressuposto do aumento da taxa de investimentos com relação ao PIB.

Eis o “x” do problema: a lógica da governança brasileira, principalmente, a partir da década de 1990 passou a ser o exercício de busca de objetivos imediatos, sendo o principal deles o do “combate à inflação”. Daí o senso comum a-histórico (qual país do mundo prosperou sob políticas macroeconômicas como a praticada no Brasil? Como advogar o “corte de gastos” com uma crescente dívida interna?) estabelecido atualmente na discussão econômica.

Existe toda uma problemática ideológica que nasce no velho debate do agrarismo x industrialismo, porém na medida em que a indústria nacional passou a ser uma conservadora realidade, o nível deste debate atingiu outro nível: ou se continuaria o esforço industrializante iniciado com Revolução de 1930 sob o pressuposto da criação de um sistema financeiro como base material a continuidade deste mesmo processo ou nos remeteríamos a uma inserção externa subalterna baseada na velha ladainha da inexistência de poupança interna (daí a taxa de juros como forma de atrair poupança externa).

Os antigos agraristas passaram a se vestir sob o traje “modernizante” dos ditos monetaristas com a missão divina de corrigir os “imensos erros” cometidos em quase 60 anos de história da industrialização brasileira.

Devemos nos pautar pela fuga a esta “armadilha da análise conjuntural”. Neste contexto, podemos questionar e debater sobre a possibilidade de um país urbano-industrial como o Brasil se contentar em ocupar seu lugar na divisão social do trabalho com exportações de commodities e importações de máquinas e equipamentos.

Podemos questionar como essa orientação posta vai ser suficiente para o crescente gargalo infraestrutural. Podemos o devemos questionar qual o futuro de nossa juventude em um país cuja desindustrialização é algo passível de se tornar fenômeno objetivo e onde o setor de serviços não cresce nas áreas ditas “tecnológicas” e sim onde os baixos salários são os mais reprimidos possíveis.

Podemos e devemos questionar quando, de fato, o crescimento brasileiro vai deixar de ser puxado pela construção civil e serviços em prol do alavancamento dos investimentos produtivos? Vamos restringir o papel do planejamento a simples conta do orçamento anual da União ou vamos até às últimas conseqüências na utilização deste ferramental para conceber o futuro do país? Continuaremos, reacionariamente, combatendo a inflação pelo resto da vida nacional ou deixaremos de analisar a inflação como uma anomalia e sim como tudo na vida social, algo de caráter cíclico, com determinações mais estruturais do que conjunturais?

Enfim, o debate está colocado. Não se solucionará os impasses da vida econômica e social do Brasil sob parâmetros conjunturais. Temos ao nosso lado a ciência e a história de uma construção nacional única no chamado Ocidente. É momento de nosso país se encontrar consigo mesmo sob o preço de pagarmos caro por nossas opções macroeconômicas datadas do final das eleições de 1989 e do Consenso de Washington.

Romero Britto celebra vitória de Dilma com obra e anúncio no NYT

Britto usou a peça publicitária para apresentar sua versão de Dilma ao público americano


Por achar a presidente Dilma Rousseff "uma coisa maravilhosa", o artista plástico Romero Britto decidiu homenageá-la. Publicou, na edição desta semana da "The New York Times Magazine", a revista dominical do "The New York Times", um anúncio de página inteira.

Para tanto, calcula ter gasto US$ 20 mil (cerca de R$ 33,5 mil). Aos domingos, a tiragem da revista fica em torno de 400 mil exemplares.

Pernambucano com galeria em Miami, autor de murais ultracoloridos, Britto usou a peça publicitária para apresentar sua versão de Dilma ao público americano.

A presidente é retratada com as cores fortes que caracterizam a obra do artista. Acima da imagem, lê-se "parabéns, minha querida, a nova presidente do Brasil". Na sequência, o artista parabeniza "todas as mulheres da América Latina".

Britto diz que, dos amigos americanos, só ouve "comentários positivos" sobre a sucessora de Lula. A empolgação pela "primeira mulher presidente", segundo ele, foi contagiante. Nos Estados Unidos durante as eleições, afirma ter feito questão de votar na petista lá mesmo.

Ele não sabe se Dilma já ficou a par da homenagem, mas disse que pretende presenteá-la com a arte em sua próxima visita ao Brasil. Espera que seja no Carnaval.

No anúncio da revista, abaixo da reprodução da pintura com o rosto da petista, há seis fotos da inauguração do Hospital da Mulher, em São João de Meriti (RJ), em março passado --quando a campanha eleitoral estava a pleno vapor.

Aparecem nos retratos Dilma, Britto, o governador do Rio, Sérgio Cabral (PMDB), e seu secretário de Saúde, Sérgio Côrtes.

sábado, 22 de janeiro de 2011

índices econômicos 22 de janeiro de 2011 - UOL

AÇÕES
VALE5.SA 0,75%
VALE3.SA 0,68%
PETR4.SA 0,81%
PETR3.SA 0,76%

Índices Econômicos

Inflação
IPCA 0,63%
IGP-M 0,69%
Indicadores
TR 0,10%
CDI 11,13%
SELIC 11,25%

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TROQUE UM PARLAMENTAR POR 344 PROFESSORES

"No futebol, o Brasil ficou entre os 8 melhores do mundo e todos estão tristes.
Na educação é o 85º e ninguém reclama..."

EU APOIO ESTA TROCA

TROQUE 01 PARLAMENTAR POR 344 PROFESSORES

O salário de 344 professores que ensinam é igual ao de 1
parlamentar que rouba

Essa é uma campanha que vale a pena!

Repasso com solidária revolta!

Prezado amigo!

Sou professor de Física, de ensino médio de uma escola pública em uma cidade do
interior da Bahia e gostaria de expor a você o meu salário bruto mensal: R$650,00

Eu fico com vergonha até de dizer, mas meu salário é R$650,00. Isso mesmo! E olha que eu ganho mais que outros colegas de profissão que não possuem um curso superior como eu e recebem minguados R$440,00. Será que alguém acha que, com um salário assim, a rede de ensino poderá contar com professores competentes e dispostos a ensinar? Não querendo generalizar, pois ainda existem bons professores lecionando, atualmente a regra é essa:

O professor faz de conta que dá aula, o aluno faz de conta que aprende, o Governo faz de conta que paga e a escola aprova o aluno mal preparado. Incrível, mas é a pura verdade! Sinceramente, eu leciono porque sou um idealista e atualmente vejo a profissão como um trabalho social. Mas nessa semana, o soco que tomei na boca do estomago do meu idealismo foi duro!

Descobri que um parlamentar brasileiro custa para o país R$10,2 milhões por ano...
São os parlamentares mais caros do mundo.
Na Itália, são gastos com parlamentares R$3,9 milhões, na França, pouco mais de R$2,8 milhões, na Espanha, cada parlamentar custa por ano R$850 mil e na vizinha Argentina R$1,3 milhões.
É PRA LAMENTAR!!!...

Trocando em miúdos, um parlamentar custa ao país, por baixo, 688 professores com curso superior !


Diante dos fatos, gostaria muito, amigo(a), que você divulgasse minha campanha,
na qual o lema será:

'TROQUE UM PARLAMENTAR POR 344 PROFESSORES'.


Repassar esta mensagem é uma obrigação, é sinal de patriotismo, pois a vergonha que atualmente impera em nossa política está desmotivando o nosso povo e arruinando o nosso querido Brasil.
É o mínimo que nós, patriotas, podemos fazer.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

O LEGADO DE LULA

O balanço de Lula contraria os tradicionais compassos das transações correntes, balança comercial, taxas de câmbio e rubricas aparentadas. São números relevantes, sem dúvida, mas, tratados com interessada subserviência, servem como disfarces da realidade – ora apresentando como diferentes entidades semelhantes, ora pretendendo ser iguais a água e a vinho. Uma variação anual positiva de 6% do PIB, por exemplo, não quer dizer que o número total de pares de sapatos produzidos no ano foi 6% superior ao total produzido nos 12 meses anteriores, ou do total de geladeiras, aspirinas, preservativos e tudo mais. Alguns números reais corresponderiam a bem mais do que à porcentagem registrada, outros a bem menos, e ainda outros a exatos 6%, sem mencionar os números novidadeiros. Uns pelos outros é que desembocam nessa média. Trivial, mas fácil de esquecer e dócil a interpretações marotas.

O economista Fernando Augusto Mansor de Mattos, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), calculou a taxa de variação do produto interno bruto brasileiro dividido pela população (PIB/per capita) nos últimos 60 anos, subdividindo o período por 14 mandatos presidenciais, acabados ou interrompidos, ditatoriais ou eleitos – de Getúlio Vargas/Café Filho a Lula I e II. Vista de longe,- parece que a história econômica do País reprisa sequências de picos e vales de crescimento, variando não mais do que o maior ou menor intervalo de tempo entre uma escalada e uma queda. Uma rotina, quase. E nada melhor que uma rotina para sugerir aos candidatos a cientistas da economia a existência de uma “lei da natureza”. Daí a se imaginar que abundância e escassez caem do céu e que todas as abundâncias se parecem não toma além de dois passos.

Mais um passo e alcançamos a tese rústica de que o governo Lula representou um prolongamento de governos anteriores, no que estes apresentaram de positivo, acrescido de bonançosos ventos internacionais. Virtude e acaso encarnados em sujeitos distintos, operando em tempos sucessivos, a tese excitaria o falecido Maquiavel. Pace Niccolò, a história não é bem essa.

O crescimento de 4,9%, em média, dos prometidos 50 anos em 5 do Plano de Metas de Juscelino Kubitschek (1956-1960), único presidente progressista eleito a concluir mandato antes do golpe militar de 1964, e o melhor a partir de então entre os de inspiração liberal, em nada se parece aos 4,1% do Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento, de Ernesto Geisel, cerca de 20 anos depois (1974-1978). Mais 30 anos passados, os modestos 3,5 de Lula II, em novo governo progressista legitimamente eleito, embora apontando ligeiro declive diante do pico JK, representaram a mais espetacular ruptura das últimas oito décadas da República. Mas a interpretação reduzida a números não ultrapassa o registro de que houve 0,8 ponto porcentual de diferença entre o PIB per capita de JK e o de Geisel, e que o de Lula ficou atrás de ambos (o modus faciendi democrático desaparece nos números). Em outras palavras, quem só vê porcentagens significantes não enxerga o conteúdo sendo significado, ignorando que, na economia, importante é o que está dentro dela, estúpido! – diriam os suecos.

Por exemplo: dentro da taxa média de crescimento do PIB/per capita de Lula II faltam números satisfatórios de aeroportos, rodovias, ferrovias e portos, justamente o que existe em abundância embutido nas taxas dos anos JK. Os “50 anos” recuperados “em 5” de Juscelino chegaram por via aérea ou recebidos em terminais rodoviários construídos às dezenas, acompanhando o ritmo de conclusão das estradas interestaduais planejadas pelos técnicos do então BNDE.- Nada a lembrar o irritante congestionamento atual de aeroportos e estradas, invadidos por passageiros de primeira ou segunda viagem e por motoristas calouros em fins de semana fora da cidade onde moram. Sem esquecer o crescente tempo de espera para desembarque das mercadorias importadas nos portos nacionais. Muitas das quais enviadas da China, com a qual – ninguém podia imaginar – praticamente não falávamos nos anos 50 do século XX. Enfim, os itens em atraso na composição do PIB de Lula I e II fizeram a glória do desfile do PIB estilo JK nos sorridentes anos dourados de meados do século passado. É bem verdade que nem todos sorriam, faltavam os dentes, mas isso fica para depois.

Segundo os conservadores, ou bem o Brasil crescia ou evitava a inflação. Escolha difícil, à falta de terceira opção, e JK, apoiado pelo País inteiro, escolheu crescer, enquanto outros, antes e depois dele, preferiram a estagnação. Perfilhou, inclusive, o desafio de transferir a capital da cidade do Rio de Janeiro para o Planalto Central. (Corre a lenda de que o escritor carioca, católico e engenheiro por formação Gustavo Corção – 1896-1978 –, autor do célebre romance Lições de Abismo, apostou contra a viabilidade civilizatória de Brasília, -assegurando que ela não teria condições de se comunicar nem telefonicamente com o resto do Brasil. Perdeu a aposta, é claro, e provavelmente teria apostado também contra a invenção do celular, jamais imaginando que tal artefato, se existisse, viesse a estar ao alcance de mais da metade da população brasileira em 2010 – cerca de 100 milhões de assinantes – quatro vezes superior ao número de celulares em circulação em 2003. Esta referência parentética destinou-se a ilustrar, com um item que de conspícuo transformou-se em básico, a rápida evolução recente do consumo em todas as rubricas típicas, como fogão, geladeira, televisão etc., consignadas pelos balanços usuais.)

Pois a tese da improbabilidade de crescimento econômico sem inflação era outro dos dogmas do período JK, adotado por todos os governos posteriores, o mesmo que se brandia à véspera do primeiro mandato de Lula. A ver as experiências históricas.

As entranhas do PIB juscelinista deram ganho de causa aos conservadores. As taxas de crescimento anual- da economia foram exuberantes: 1956 = 3,2; 1957 = 8,1; 1958 = 7,7; 1959 = 5,6; 1960 = 9,7. E não seria impróprio atribuir ao carry-over do período juscelinista parte da saborosa taxa de 10,3, em 1961, já no mandato de Jânio Quadros (Conjuntura Econômica, 1972, Separata: 25 Anos de Economia Brasileira, Estatísticas Básicas – FGV). Em contraposição, o índice de preços saiu de um patamar de aumento já elevado de 12,4%, em 1955, avançando a 24,4%, em 1956, e terminando o ano de 1959 com 39,5%, recorde desde o restabelecimento da democracia em 1945. Como de costume, o decreto 39.604-A, de 14 de julho de 1956, concedeu adicional de salário somente aos trabalhadores da indústria. Mais usual ainda, não houve reajuste salarial em 1957 ou em 1958 (Ibre/FGV, Índice de Preços Selecionados – Variações Anuais, 1946/1980).

A decomposição pelo avesso compromete um pouco o brilho do desempenho agregado dos indicadores econômicos de JK.

O oposto se dá com as taxas agregadas de aumento do PIB per capita de Lula I e II. Se mais modestas, elas revelam, contudo, a falsificação da tese hegemônica de que vigoroso crescimento econômico seria incompatível com taxas inflacionárias cadentes. Manutenção do poder de compra dos salários, então, segundo a ortodoxia republicana, nem pensar, sendo ademais delirante a hipótese de que, no Brasil, a economia suportaria aumentos reais na renda dos assalariados. Tentativas anteriores teriam conduzido o País ao limite da anarquia política e à desorganização das contas públicas (fortíssimos indícios, de acordo com as mesmas fontes midiáticas conservadoras e seus conselheiros, de planos sindicalistas revolucionários). Como se vê, não é tanto a história que se repete quanto à natureza e origem dos obstáculos que dificultam a sua progressão.

A avalanche de indicadores positivos durante o governo Lula soterrou o pessimismo.

A retomada do crescimento econômico veio acompanhada de inflação cadente e sob controle, acrescida de inédito aumento na massa de rendimento do trabalho. Em particular, o salário mínimo real dos empregos formais aumentou em 54%, entre 2002 e 2010, estendendo-se o número de trabalhadores com carteira assinada a mais de metade da população economicamente ocupada (Dieese: Política de Valorização do Salário Mínimo, in: Nota Técnica nº 86, São Paulo, 2010). Foram mais 15 milhões de brasileiros a obter empregos com direitos trabalhistas reconhecidos (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados – Caged, novembro 2010). Naturalmente, também cresceu o número de assistidos pelo sistema da Previdência Social. A curva do desemprego, outro fantasma da excessiva prudência conservadora, apresentou uma evolução favorável, com taxas cadentes desde 2005 até o recorde favorável de 2010, quando a taxa de desocupação foi reduzida a 5,9% da população economicamente ativa.

Vale registrar que o desmonte das hipóteses econômicas sombrias se processou com crescente e pacífica participação nos assuntos públicos por parte de todos que o desejaram. Não houve qualquer repressão oficial a movimentos populares, opiniões ou manifestações políticas. Nenhum grupo social popular ou conservador teve cerceados ou amputados direitos de expressão pública. Ao contrário, entre 2003 e 2009, foram promovidas 59 conferências nacionais sobre os mais variados temas, com o envolvimento de mais de 4 milhões de pessoas, ademais da criação ou reorganização de 18 conselhos para tratamento de problemas históricos da população (Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, Caderno Destaques, novembro/dezembro de 2009, Brasília).

Ao contrário da anarquia prevista, a substituição de um sistema de valores e de práticas de perfil tradicionalmente elitista por uma orientação de governo comprometido com a promoção econômica, social e cultural da vasta maioria de trabalhadores brasileiros, em particular de suas camadas mais pobres, inaugurou um clima de temperatura política tolerante e cooperativa. São os extremos de dogmático espectro ideológico que, hoje, lastimam a redução na intensidade dos conflitos que, preveniam, seriam atiçados pelo governo Lula da Silva. O absoluto respeito por parte do Executivo às regras do jogo e às demais instituições do País – judiciárias, legislativas, estaduais – é um dos aspectos incluídos no reconhecimento que a população dispensou ao governo, em porcentagens acima até mesmo do apoio eleitoral que lhe deu.

A comoção que acompanhou a transmissão da faixa presidencial à presidenta eleita, Dilma Rousseff, bem como a despedida do presidente Lula da Silva, testemunha a extensão de seu sucesso, excepcional contradita às suspeitas que cercaram sua posse em janeiro de 2003.

Crescer economicamente, administrando a inflação com racionalidade, promovendo a criação de empregos e a valorização real da renda dos trabalhadores não é equação a ser resolvida em demonstrações doutorandas, mas pelo compromisso axiomático do governo com a justiça social e com o progresso material e soberano do País.

Para ser desigual alguém precisa existir. Parece óbvio, mas, em 2006, de acordo com projeções do IBGE, 12,6% da população não existia oficialmente. Em 2002, teriam sido 20,9%. Em Rondônia, o número de nascidos e não registrados no primeiro ano de vida alcança 40%, recorde nacional, e, no Amapá, 33% (Secretaria de Comunicação Social, Caderno Destaques, nov/dez 2009). No total, são pessoas que não dispõem ou dispunham de documento comprobatório de existência, nascimento, nome ou residência. Consequentemente, desassistidas de qualquer tipo de política pública ou direito civil. Para a maioria da população, o acesso a registros tais como certidão de nascimento, carteira de identidade, CPF e carteira de trabalho aparece- -como -fatos tão naturais quanto o nascer, crescer e trabalhar. Não obstante, foi necessário um governo popular se interessar por essa multidão oficialmente invisível e passar a despender recursos para trazê-la à luz do dia. Mutirões foram realizados e outros 1.225 previstos para 2010, particularmente na Amazônia Legal e no Nordeste, para execução do programa de Ampliação do Acesso à Documentação Civil Básica. O alvo é o contingente de brasileiros constituído de povos indígenas, quilombolas, ciganos, ribeirinhos, trabalhadores rurais, moradores de rua, catadores de recicláveis, crianças e idosos em abrigos, distribuídos em municípios de elevados índices de sub-registro.

É duvidoso que um item dessa natureza seja facilmente encontrável na decomposição de qualquer indicador agregado dos governos anteriores, próximos ou remotos. Mas eles fazem parte do povo de Lula, tanto quanto a vanguarda operária dos centros industriais das grandes cidades e a classe média recém-engordada por passageiros vindos das classes D e E.

Na vasta maioria dos casos, o acesso à documentação representa o ingresso em alguma ou várias formas reconhecidas de desigualdade. Nada mais fácil para um brasileiro do que se incorporar a um desequilíbrio social, de um lado ou de outro: gênero, cor, instrução, renda, idade, geografia de nascimento e até estética são portais escancarados à estratificação e discriminação. Entre outros, e crucial, é o portal da Justiça.

A Justiça é dispendiosa para todas as pessoas e para os pobres em particular, além de cara, amedronta mais do que apazigua. Ainda agora- o IBGE- -publicou preciosa pesquisa sobre Características da Vitimização e do Acesso à Justiça no Brasil (IBGE, 2009), com números sobre violência contra pessoas e contra a propriedade, repetindo em certa medida investigação semelhante que realizara em 1988, há 22 anos, portanto. Entre as infaustas novidades encontram-se as que dizem respeito às vítimas preferenciais da violência por classe de renda e idade, por exemplo, e seus algozes. Com base em amostra nacional de 399.387 pessoas e 153.837 unidades domiciliares distribuídas por todas as unidades da Federação, os resultados revelam um quadro comparativo ainda desalentador. Mesmo em casa, não mais do que 78,6% das pessoas se sentem seguras, porcentagem que cai para alarmantes 52,8% da população quando estão na cidade, longe da casa e do bairro.

Há substancial variação regional nesses números, aparecendo a Região Norte como aquela em que a população se sente menos segura, seja em casa (71,6%), no bairro (59,8%) ou na cidade (48,2%). Segundo a pesquisa, os homens sentem-se mais seguros que as mulheres, sem diferença marcante entre brancos e pardos, nesse item sobre subjetividade, em qualquer dos locais investigados. Cerca de 8,7 milhões de pessoas, 5,4% da população residente de 10 anos de idade ou mais, foram vítimas de roubo e/ou furto no período de 27 de setembro de 2008 e 26 de setembro de 2009, com a maior incidência ocorrendo com pessoas- de 16 a 34 anos de idade. A violência física caminha na direção inversa à da renda, com a maioria agredida situando-se na faixa de um quarto do salário mínimo. Os autores da violência física foram desconhecidos, em 39% dos casos, pessoas conhecidas em 36,2%, cônjuge ou ex-cônjuge, 12,2%, parentes em 8,1% das agressões e 4,1% de autoria de policiais ou seguranças privadas. Entre as mulheres, 25,9% delas foram agredidas por cônjuge ou ex-cônjuge. Sujeitas a várias discriminações, as mulheres e a população não branca atestam vários dos desequilíbrios sociais praticados pela sociedade, não obstante a legislação penal existente.

Entre 1988 e 2009, a violência contra a população branca foi reduzida de 64,6% para 52%, enquanto a população preta ou parda, vitimada, aumentou de 34,9% para 47,1%. O mesmo fenômeno se deu na comparação por gênero: a porcentagem de homens roubados ou furtados decresceu de 58,3% para 53,1%, enquanto a das mulheres aumentou de 41,7% para 46,9%. As porcentagens relativas à violência física seguem o mesmo padrão: enquanto a população branca, em particular a masculina, obteve acréscimos de segurança, nos últimos 20 anos, a probabilidade de sofrer agressões corporais aumentou para a população feminina, preta e parda.

Embutido nesses números está o testemunho da extensão em que níveis de pobreza, por certo, mas igualmente da aspereza da cultura cívica somam-se para fabricar uma sociedade ainda predatória e discriminatória. Sua superação exige largo intervalo de tempo.

Do outro lado da ponta da prevenção, que claudica, encontra-se a oferta de proteção jurídica. A nova Lei Orgânica da Defensoria Pública, de outubro de 2009, ampliou e tornou efetiva a possibilidade de que cidadãos sem capacidade financeira para a contratação de advogados obtenham condições de trazer pleitos junto aos tribunais. Entre 2003 e 2008, o número de defensores públicos passou de 3.250 para 4.525, e o número de atendimentos jurídicos de 4,5 milhões para 9,6 milhões, um acréscimo de 113% (Fonte: Ministério da Justiça).

O Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte, criado em 2003, embora não implantado ainda em todos os estados, já atendeu 1.375 crianças e adolescentes e 2.255 familiares. Diante da incessante fábrica de desigualdades, -discriminações e violência que é a sociedade brasileira, programas como o (PPCAAM), entre outros, e inovações institucionais como as Secretarias Especiais da Mulher e da Promoção da Igualdade Racial, que atuam sobretudo na reparação de transgressões, não deixarão de apresentar resultados mais substantivos no longo prazo.

Se a violência estrutural é difusa e resistente, a redução das carências iminentes da população pobre – atendimento à saúde e educação – depende fortemente da disposição e ação governamentais. O número de farmácias populares para atendimento ao povo de Lula cresceu 1.826%, entre 2004 e 2008, vendendo mensalmente medicamentos a preço de custo a 1 milhão de pessoas. Outro milhão de pessoas adquire medicamentos, por mês, com descontos de até 90%.

O programa Saúde da Família é conhecido, mas nem tanto o programa Brasil Sorridente, para o povo malcuidado, tópico embaraçoso para governos de elite. Em 2004, foram instalados cem Centros de Especialidades Odontológicas, aumentados para 771, em 2009. Com 18.650 equipes, atenderam 87 milhões de brasileiros, em 2009 (Ministério da Saúde, Boletim, novembro de 2009).

Programas para portadores de deficiência física, que alcançam 14% da população do País, incluíram a adequação de 10.489 escolas, entre 2007 e 2009, para atendimento especializado (Seesp/MEC). O ProUni, educacional, o Programa da Agricultura Familiar, produção de alimentos, e o Minha Casa Minha Vida, habitacional, somam-se aos referidos para orquestrar o que constitui o compasso essencial do balanço de Lula. O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) tem papel destacado na composição do PIB dos últimos anos, com certeza, assim como as iniciativas nas áreas da grande agricultura e da exportação. A visibilidade do programa Bolsa Família e suas dezenas de milhões de famílias recuperadas à miséria a instala por gravidade no centro da atenção midiática.

Mas o pernóstico debate sobre atribuído assistencialismo do programa ofusca o princípio ordenador das prioridades do governo e o sentido histórico dos dois mandatos do presidente Lula da Silva. Crescimento econômico, inflação sob controle, expansão do emprego e redução das desigualdades sociais são metas compatíveis, sim, entre si e com a democracia, desde que o governante adote políticas em harmonia com a agenda preferencial do povo – isto é, do povo de Lula.

E PORQUE NÃO O SOCIALISMO

O legado de Gerald Cohen (II): Por que não o socialismo?
Em seu livro "Por que não o socialismo?", Gerald Cohen recorda que nas emergências, como em inundações ou num incêndio as pessoas atuam com base nos princípios solidários de um acampamento. A viabilidade do socialismo que Cohen discute não se refere a se podemos chegar a ele a partir de onde estamos, agora, mas se o socialismo funcionaria e se seria estável. Cohen pensa que o principal problema do socialismo não é o egoísmo, mas que não sabemos como desenhar a maquinaria que o faria funcionar; seria nossa carência de uma tecnologia organizacional adequada: nosso problema é de desenho. O artigo é de Julio Boltvinik.
Julio Boltvinik - La Jornada
Homenagem a Gerald A, Cohen (1941-2009) - Terceira parte: O socialismo de mercado

Nos capítulos 3 e 4 de Why not socialism? (Princeton University Press, 2009) Cohen põe à prova os princípios da igualdade socialista de oportunidades e de comunidade que derivou (capítulo 2) como princípios constitutivos do socialismo da prática das viagens de acampamento, ao enfrentá-los com as perguntas de se são desejáveis e viáveis, a sua possível escala macrossocial e permanente. Muitos, assinala, notariam os traços especiais do acampamento para distingui-lo da vida normal da sociedade moderna, e duvidariam da desejabilidade e da viabilidade de aplicar nela os princípios apontados por Cohen com seu exemplo: trata-se de uma atividade recreativa na qual não há grupos que competem e em que as pessoas se conhecem pessoalmente e na qual não há tensão entre as responsabilidades familiares e sociais. Cohen pensa que as diferenças apontadas não minam a desejabilidade e a ampliação em escala social dos valores do acampamento.

“Não penso que a cooperação e a ausência de egoísmo no acampamento sejam adequados apenas entre amigos ou no interior de uma pequena comunidade. Na provisão mútua de uma sociedade de mercado, as pessoas são essencialmente indiferentes ao destino do agricultor cujos alimentos come. Sigo achando atrativo o sentimento de uma canção de esquerda que aprendi na minha infância e que começa assim: “Se nos considerássemos uns aos outros um vizinho, um irmão, o mundo seria maravilhoso, maravilhoso”.

Passando ao tema da viabilidade do socialismo e contra a ideia de que só em atividades recreativas os seus princípios se tornam atrativos, Cohen recorda que nas emergências, como em inundações ou num incêndio as pessoas atuam com base nos princípios do acampamento. Os mexicanos recordamos, com grande emoção da explosão de solidariedade, sentimento que acreditávamos quase inexistente, depois do terremoto de 1985. A viabilidade do socialismo que Cohen discute não se refere a se podemos chegar a ele a partir de onde estamos, agora, mas se o socialismo funcionaria e se seria estável. Cohen assinala duas possíveis razões pelas quais se pode pensar que o socialismo em escala social é inviável:

1) os limites da natureza humana: seríamos insuficientemente generosos e cooperativos;

2) mesmo se as pessoas forem ou puderem se tornar, na cultura adequada, suficientemente generosas, não sabemos como fazer com que (através de estímulos e regras apropriados) a generosidade faça as rodas da economia girarem, em contraste com o egoísmo humano que sabemos conduzi-la muito bem para esse fim.

Cohen pensa que o principal problema do socialismo não é o egoísmo, mas que não sabemos como desenhar a maquinaria que o faria funcionar; seria nossa carência de uma tecnologia organizacional adequada: nosso problema é de desenho. Afinal de contas, acrescenta, propensões egoístas e generosas habitam (quase?) todo mundo e, no mundo real, depende-se muito da generosidade ou, para dizê-lo de maneira mais geral e mais negativa, de incentivos não mercantis. Por exemplo, não é preciso sinais de mercado para saber quais enfermidades hão de ser curadas ou que matérias ensinar no colégio, mas nos guiamos por uma concepção das necessidades humanas. No entanto, uma vez que se transcendem os bens que todos querem, por estarem ligados às necessidades e nos encontramos na esfera das mercadorias opcionais, torna-se mais difícil saber o que produzir e como produzi-lo sem sinais do mercado.

Acrescenta que muito poucos economistas socialistas estariam em desacordo com essa afirmação. Tenho a impressão de que Cohen, influenciado por economistas muito próximos vinculados à corrente principal (ortodoxa) dessa disciplina, tinha uma ideia do funcionamento dos mercados que se parece mais com os modelos de competição perfeita dos neoclássicos, e não com os mercados realmente existentes. Um mundo sem oligopólios e sem o tsunami da publicidade, que terminam por criar a demanda para os bens que eles decidem produzir. Um mundo em que prevalece a soberania do consumidor. Por isso afirma que os sinais do mercado revelam que vale a pena produzir (veja-se em itálico na citação seguinte). Em troca, fala dos padecimentos, da planificação compreensiva: “Sabemos que a planificação central, ao menos como foi praticada no passado, é uma má receita para o êxito econômico, ao menos uma vez que a sociedade usufruiu dos elementos essenciais de uma economia moderna”. Compara o modelo ideal do mercado (e sua suposta eficiência) com a planificação realmente existente. Pretende combinar, para tanto, os princípios socialistas com esta imagem do mercado:

À luz dos padecimentos da planificação compreensiva, por um lado, e da injustiça dos resultados de mercado e da depreciável moral das motivações mercantis, por outro, é natural perguntar se seria viável manter os benefícios de informação que o mercado provê, com respeito ao que deve ser produzido, enquanto se eliminam seus pressupostos motivacionais e suas consequências distributivas. Podemos ter eficiência de mercado na produção sem seus incentivos e sua distribuição de recompensas?

Há maneiras, disse, de introduzir fortes elementos de comunidade e igualdade num sistema econômico em que prevaleça a eleição baseada no interesse egoísta: uma, o Estado de Bem Estar Social, que retira do mercado grande parte da provisão para as necessidades; outra, o socialismo de mercado. Chama-se socialismo porque elimina a divisão entre capital e trabalho: toda população é proprietária do capital das empresas que, possuídas pelos trabalhadores ou pelo Estado, enfrentam-se nos mercados competitivos. Cohen é agudamente consciente de que o socialismo de mercado “reduz sem eliminar a ênfase socialista na realidade econômica. E prejudica também a comunidade, pois no mercado não há reciprocidade comunitária. Ele não é um fã do socialismo de mercado:

O socialismo de mercado não satisfaz plenamente aos padrões socialistas de justiça distributiva e, embora o torne melhor que o capitalismo, está em defasagem porque há injustiça num sistema que confere altas recompensas às pessoas muito talentosas que organizam cooperativas altamente produtivas. É também um socialismo deficiente, porque o intercâmbio mercantil que se encontra em seu centro atua contra o princípio de comunidade... A história do século XX estimula a ideia de que a maneira mais fácil de gerar produtividade numa sociedade moderna é alimentando os motivos da cobiça e do medo. Mas não devemos nunca esquecer que cobiça e medo são motivos repugnantes. Os socialistas de velho estilo com frequência ignoram em sua condenação moral da motivação mercantil a justificação instrumental da mesma, realizada por Adam Smith. Alguns super entusiásticos socialistas de mercado tendem, de maneira oposta, a esquecer que o mercado é intrinsecamente repugnante.

E, citando o epílogo do livro, com Einstein arremata seu belo livro, assim:

Concordo com Albert Einstein que ‘o socialismo é o desejo da humanidade de ir mais além da fase predadora do desenvolvimento humano’. Todo mercado, mesmo um mercado socialista, é um sistema predatório. Nosso propósito de ir mais além da depredação tem falado até agora. Não creio que a conclusão correta seja dar-se por vencido.

Quarta parte: o exame da validade do materialismo histórico

A nova edição em inglês (2000) da Teoria da história de Karl Marx: Uma Defesa, de Gerald Alan Cohen (a original é de 1978), inclui uma nova introdução e quatro capítulos acrescidos ao final. Hoje me referirei ao capítulo 13, no qual ele põe em dúvida a conclusão básica de seu livro: a teoria da história de Marx é verdadeira! Assim o expressa:

“(...) cheguei a me perguntar se a teoria que o livro defende é verdadeira. Não acredito, agora, que o materialismo histórico seja falso, mas não estou seguro a respeito de como saber se é ou não verdadeiro. Isto é opaco porque temos uma concepção tosca de que tipo de evidência o confirmaria ou rechaçaria. Ainda que trate em KMTH (como Cohen abrevia sua obra) de ter a teoria mais precisa e de clarificar suas condições de confirmação, resultará evidente das linhas descritas neste capítulo que se requer clarificação adicional”. (p.341)

Contraste-se esta visão do materialismo histórico como teoria científica sujeita a comprovação empírica com a postura de György Márkus:

“A teoria do progresso humano não é a ‘ciência positiva’ da história. Só tem sentido como um elemento do esforço histórico prático para dar à história humana o sentido de progresso, quer dizer, para criar condições sob as quais todos os indivíduos possam participar de maneira efetiva e igual nas decisões que determinam como dar forma ao marco social e institucional de suas vidas para viver melhor, de acordo com seus próprios valores e necessidades” (Sobre a possibilidade de uma teoria crítica, Desacatos, N° 23, p. 186).

Cohen adverte, aproximando-se de Márkus, cuja obra, ao que parece, não conhecia, que “suas reservas sobre a teoria não debilitam sua crença de que é desejável e possível extinguir as relações sociais capitalistas e reorganizar a sociedade sobre uma base justa e humanitária”, visto que a apreciação dos principais males do capitalismo não depende de teses ambiciosas sobre o conjunto da história humana. Tampouco a possibilidade de estabelecer uma sociedade sem exploração e acolhedora da plenitude humana requer nem talvez derive de tais teses.

Cohen identifica quatro doutrinas, todas materialistas, formuladas por Marx, que ademais têm em comum a ênfase na atividade produtiva: antropologia filosófica, que concebe os humanos como seres essencialmente criativos; teoria da história, na qual o crescimento dos poderes produtivos é a força que determina a mudança social; ciência econômica, em que o valor é explicado em termos do tempo de trabalho; e uma visão da sociedade futura: o bem supremo do comunismo é que ele permite um prodigioso florescimento do talento humano.

Cohen sustenta que a antropologia de Marx sofre severamente de unilateralidade: tem uma ênfase exclusiva no lado criativo da natureza humana [esquece Cohen o papel central das necessidades nessa antropologia] mas não atende à relação do sujeito consigo mesmo e à relação com os outros, que é uma forma mediada de relação consigo mesmo. Diz que Marx (quase) deixou de fora a necessidade humana da auto identificação ou identidade e suas manifestações sociais. Argumenta que os agrupamentos humanos que não tem caráter econômico, como as comunidades religiosas e as nações são tão fortes e duráveis em parte porque oferecem satisfação da necessidade individual de auto identificação. Ao aderir a comunidades tradicionais, acrescenta, as pessoas tem um sentido do que são. Cohen está pensando mais no que Abraham Maslow chama de necessidade de pertencimento, do que na de identidade. Maslow disse:

Podemos subestimar a profunda importância do bairro, do território próprio, do clã, dos nossos, de nossa classe, do nosso grupo. Temos esquecido nossas profundas tendências animais à manada, a nos unir, a pertencer. Qualquer sociedade boa deve satisfazer a essa necessidade, de uma ou de outra maneira, se há de sobreviver e ser saudável.

Por isso Cohen assinala que “o interesse em se definir ou se situar não é satisfeito pelo desenvolvimento dos poderes humanos. Mesmo quando uma pessoa ganha em entendimento de si mesmo através da atividade criativa, uma vez que se reconhece no que fez, modula tipicamente um entendimento de si mesmo, como ser que possui um certo tipo de capacidade, não é por isso capaz de situar a si mesmo como membro de uma comunidade”. A pessoa, acrescenta, necessita saber quem é e como isso que é se conecta com outros; tem de identificar-se com alguma parte da realidade social objetiva. Cohen introduz aqui duas advertências:

1) não sustenta que haja uma necessidade de religião ou de nacionalismo, mas que esses tem sido fatores históricos de satisfação da necessidade de identidade;

2) ao falar de necessidade de entender a si mesmo, diz Cohen, a quem parecer que assim reinterpreta a necessidade de identidade, uso entendimento num sentido que inclui o falso entendimento.

As formas mais comuns da religião e o nacionalismo constituem meios imaturos de satisfação da necessidade de identidade, apropriados para um estado menos plenamente civilizado de desenvolvimento humano.

E quanto à visão de futuro, Cohen põem em dúvida tanto a ideia de Marx da desaparição dos papéis (aos que o viam como restrições o desenvolvimento humano) no comunismo, como o ideal de multilateralismo no desenvolvimento das capacidades. Marx insistia em que todos realizariam a plena gama de capacidades, mas Cohen se pergunta: o que tem de mal em alguém se dedicar a uma ou a poucas atividades e que restem muitos talentos em cada indivíduo sem serem desenvolvidos? Anota que há uma eleição frequente entre um modesto desenvolvimento de várias habilidades ou o desenvolvimento virtuoso de uma ou poucas, e não há base para afirmar a superioridade geral de uma opção.

O desenvolvimento pleno não se segue necessariamente do desenvolvimento livre. Termina o capítulo abordando a pergunta sobre se a unilateralidade da antropologia filosófica (a que qualifica de falsa) é a origem da falta de atenção do materialismo histórico aos fenômenos, mas o espaço se esgotou e não pude criticar a visão limitada de Cohen da antropologia filosófica de Marx.

(*) Há uma edição em espanhol que traduz a obra original de 1978, da Siglo XXI Editores España (agradeço esta informação a Paulette Dieterlen e a dois leitores). Em inglês a obra é Karl Marx’s Theory of History: A Defense, Clarendon Press, Oxford, 2000, 442 páginas. Como se avalia, as dúvidas (veja-se a seguir), surgiram em Cohen rapidamente.

(**) Até o final do capítulo Cohen expressa seu domínio insuficiente do conceito de essência humana, o qual corresponde ao seu desconhecimento do trabalho Marxismo e Antropologia, de György Márkus, sistematização única do conceito de essência humana em Marx. Isto se reflete em seu tratamento superficial, como veremos, da antropologia filosófica de Marx.

(***) Compare-se com as seguintes idéias de Erich Fromm, expressas em Psicanálise da Sociedade Contemporânea: “A escala da humanidade, o grau no qual o homem se afasta de si mesmo como um eu separado depende do grau em que tenha saído do clã e do grau em cujo processo de individuação se tenha desenvolvido. O membro de um clã primitivo poderia expressar seu sentido de identidade na fórmula eu sou nós; ele não pode se conceber como um indivíduo que existe independentemente de seu grupo. Apesar de o desenvolvimento da cultura ocidental ter se orientado na direção de criar as bases para a experiência plena do individualismo, para a maioria das pessoas esse não passou de uma fachada, por trás da qual se esconde o fracasso em adquirir um sentido individual de identidade, que foi substituído pelos de nação, religião, classe e ocupação. Em lugar da identidade pré-individualista, desenvolve-se uma identidade gregária, na qual o sentido de identidade depende de um pertencimento inquestionável à multidão.

Quinta parte: Com Márkus respondo à crítica de Cohen à antropologia filosófica de Marx

No texto anterior deixei pendente a resposta à tese de Cohen (expressa no capítulo 13 de Teoria da História de Karl Marx: Uma Defesa – THKM) de que a antropologia filosófica de Marx é unilateral, visto que deixa fora a necessidade humana de identidade e, portanto, dá importância a fenômenos como o nacionalismo e a filiação a grupos religiosos. Assinalei, no entanto, que Cohen não cita (pelo que suponho que não conhecia) o livro de György Márkus ("Marxismo e Antropologia" (Grijalbo, 1973 e 1985), que contém a sistematização plena (e única) da antropologia filosófica de Marx, cujo exame (embora seja parcial e sucinto) pode ajudar a discernir se Cohen tem razão.

Em primeiro lugar, Fromm assinalou que a maior parte dos indivíduos das sociedades modernas são incapazes de assumir uma identidade individual e se refugiam numa forma modificada da identidade do ser humano primitivo (eu sou nós); eu sou a multidão (veja-se nota acima). Em segundo lugar, devo observar, nem Marx nem Márkus formularam uma lista ou um esquema de necessidades humanas, daí porque assinalar a omissão de alguma delas e, sobretudo, converter tal omissão em algo que torne a antropologia filosófica de Marx falsa é desacertado e desproporcional.

Tampouco no esquema de necessidades de Maslow se incluía a necessidade de identidade, mas sim a de pertencimento (grupal). Em troca, nas concepções de necessidades de Fromm e de Max Neef e coautores, a identidade ou o sentido de identidade é uma necessidade explícita. Em terceiro lugar, é necessário afirmar claramente que as pessoas necessitamos pertencer a um grupo social, mas ele não faz necessariamente com que nossa identidade (que também, em minha opinião, é uma necessidade universal) não possa ser individualista-universalista. Maslow diz que as pessoas autorrealizadoras (as que conseguiram realizar suas potencialidades centrais) “identificam-se com toda a humanidade. Tem um profundo sentimento de identificação, simpatia e afeto pelos seres humanos em geral, como se todos fossem de uma só família. No entanto, poucos o entendem: são como estrangeiros onde quer que vivam”.

Ninguém classificaria como falsa a teoria das necessidades de Maslow por omitir a necessidade de identidade. Apesar de Marx e Márkus não elaborarem uma lista de necessidades humanas, encontramos na antropologia filosófica do primeiro, sistematizada pelo segundo, uma série de elementos que, em minha opinião, apontam para a necessidade de identidade grupal (cito juntando extratos não necessariamente literais da obra de Márkus e os comento entre colchetes):

Antes de qualquer coisa, o homem é um ente genérico, isto é, um ser social e comunitário. Esta descrição do ser humano como comunidade significa, por uma parte, que o homem não pode levar uma vida humana, não pode ser homem como tal senão em sua relação com os demais e a consequência dessa relação. Por outro lado, significa que o indivíduo não é indivíduo humano senão à medida em que se apropria das capacidades, das formas de conduta, das ideias, etc., originadas e produzidas pelos indivíduos que o precederam ou que coexistam com ele, e as assimila (mais ou menos universalmente) a sua vida e a sua atividade. Assim, pois, o indivíduo humano concreto como tal é um produto em si mesmo histórico-social.

A história de um indivíduo singular, disse Marx, não se pode de modo algum arrancar da história dos indivíduos precedentes e contemporâneos, mas está por esta determinada (Ideologia Alemã). A individualidade concreta especificamente humana não se origina senão a partir da participação ativa no mundo produzido pelo homem, através de uma determinada apropriação deste. [Até aqui resta claro que o homem, independentemente de suas percepções, está inserido objetivamente na comunidade – e parcialmente determinado por esta]. Porém, por outro lado, as inter-relações entre os indivíduos não são nunca relações naturais imediatas, tem sempre como pressuposto as de troca [intercâmbio] material e espiritual que esses indivíduos encontram. A sociabilidade do homem não se reduz ao ato de produção. Marx atribui uma função particular no processo genético da sociedade à humanização das relações naturais entre os sexos e entre as gerações. A sociabilidade é um traço essencial do indivíduo inteiro e penetra em todas as formas de sua atividade vital [Portanto, a sociabilidade é também um traço social de sua consciência, que inclui seu sentido de pertencimento e de identidade].

A vida coletiva, social produz também novas necessidades individuais, que são, antes de tudo a necessidade de ajuste humano. A produção adquire caráter social no sentido concreto de que os indivíduos começam a produzir uns para os outros, seus produtos se completam reciprocamente, seu trabalho se converte em autêntico componente integrante de um trabalho total social, e os produtos se convertem em produto comum do trabalhador coletivo [Com a divisão ampliada do trabalho a comunidade ou sociedade começa a mudar]. A atividade do indivíduo se torna objetivamente dependente da atividade de um âmbito cada vez mais amplo de indivíduos; ao mesmo tempo, constituem-se para os indivíduos as condições históricas mais elementares, nas quais as experiências podem se apropriar, o saber e a riqueza do mundo acumulados pela humanidade inteira, e utilizá-los.

Processo no qual o homem se torna ente social universal. A história das hordas, das tribos e das etnias origina paulatinamente a história universal, e o indivíduo mesmo se converte num ente universal, num ser histórico-universal. Essa ampliação da troca entre os homens produz as condições da autonomia do homem individual, com respeito ao seu próprio entorno e, sobre a base dessa autonomia, as condições do desenvolvimento da interioridade humana, da individualidade humana real. O homem não se torna realmente indivíduo senão no curso da evolução histórica, precisamente porque, através da troca cada vez mais universal, essa evolução dissolve aquelas pequenas comunidades. [Marx vê a possibilidade de um novo sentido de identidade, que rebaixa ao comunitário, ao da nação, similar à dos auto realizadores de Maslow, antes referida].

Nesse sentido a universalização e a individualização do homem são um processo unitário, embora essa unidade não se realize durante toda uma gigantesca época histórica, senão através de contraposições (a universalização é na era da alienação a unidade da individualização e da despersonalização).

A antropologia filosófica marxista contém todos os elementos, ainda que não estejam explícitos, como se avalia, para fundar a necessidade da identidade. Mas a visualiza num sentido dinâmico: da identidade da família e do clã, passando pela da tribo e da nação, até chegar à identidade da espécie, a identidade genérica. Creio que Cohen não avaliou essa tendência positiva a superar o paroquial. Em todo caso, podemos conceder a Cohen que Marx subestimou as resistências e as dificuldades que o trânsito do eu sou nós para o “eu sou eu, membro da espécie Homo sapiens, mas plenamente individualizado”.

Conheça a página de Julio Boltvinik

Tradução: Katarina Peixoto

Marxismo Analítico

O legado de Gerald Cohen, fundador do marxismo analítico
Em uma série de cinco artigos, o sociólogo mexicano Julio Boltvinik analisa a contribuição do filósofo Gerald Cohen para os estudos da obra de Marx. A operação decisiva que criou o marxismo analítico foi o rechaço da pretensão de que o marxismo possui valiosos métodos intelectuais próprios, o que permitiu a apropriação de uma rica corrente metodológica que este, em seu detrimento, havia evitado. Na última etapa de sua vida, Cohen abordou temas de filosofia moral e política, que os marxistas costumavam desdenhar.
Julio Boltvinik - La Jornada
Primeira Parte: por que o marxismo se ocupou da filosofia política e moral

Fiquei sabendo da morte deste grande filósofo muitos meses depois de ocorrida e me doeu muito, apesar de meu contato com sua obra intelectual (quase) se limitasse a sua lúcida crítica ao enfoque de "capacidades" capabilities de Amartya Sen, já que sua obra em torno do pensamento de Marx eu (quase) não tinha lido. Embora tivesse sua grande obra de “juventude”, publicada em 1978: "A teoria da história de Karl Marx: Uma defesa", que foi considerada como a insígnia do marxismo analítico, tinha lido somente com grande admiração e assombro o primeiro capítulo, intitulado "Imagens da história em Hegel e Marx". Ao ficar sabendo de sua morte há uns seis meses adquiri alguns de seus outros livros e os tenho lido com avidez, aumentando minha admiração por sua grande capacidade e rigor analíticos. Na introdução à nova edição desta obra juvenil ele explica o que é o marxismo analítico e como ingressou nessa corrente de interpretação.

A operação decisiva que criou o marxismo analítico foi o rechaço da pretensão de que o marxismo possui valiosos métodos intelectuais próprios, o que permitiu a apropriação de uma rica corrente metodológica que este, em seu detrimento, havia evitado.

Este é um assunto central e que merece um tratamento detalhado que desejo fornecer. Devo adiantar que minha admiração por Cohen não impede que tenha fortes desacordos com ele, inclusive em temas centrais. Hoje me interessa apresentar este grande filósofo. Comecemos por alguns extratos autobiográficos:

“Me considero judeu mas não acredito no Deus do Antigo Testamento. Fui criado tanto para ser judeu como para ser antirreligioso e sigo sendo muito judeu e bastante ateu. Minha mãe era orgulhosa de ter se tornado proletária em Montreal, depois de ter nascido numa família burguesa da Ucrânia. Meu pai, também operário, pertencia a uma organização judaica antirreligiosa, antissionista e fortemente pro-soviética. Minha primeira escola, dirigida por essa organização, era muito política e antirreligiosa. Nas tardes, a linguagem de instrução era o ídiche. Judeus e judias de esquerda nos ensinavam história judaica (e de outros povos) e a língua e a literatura ídiche. Até quando narravam as histórias do Antigo Testamento as impregnavam do vernáculo marxista. Uma das matérias em ídiche era História da Luta de Classes.

Quando os estadunidenses matam vietnamitas, os soviéticos cercam os tchecos, os sérvios assassinam bósnios, sinto-me enojado, frustrado e triste. Mas quando os israelenses destroem casas e matam homens, mulheres e crianças nos territórios ocupados, há sangue em minhas próprias mãos e choro de vergonha. Por que me sinto tão judeu? Parte da resposta é que a tradição judaica foi bombardeada em minha alma na infância. Mas outra razão é o antissemitismo. Sartre exagerou quando disse que é o antissemita que cria o judeu. Mas quem poderia negar que o antissemita reforça o sentimento judaico no judeu?” (If you’re an Egalitarian, How Come You’re so Rich?,[algo como: Se você é igualitarista, como pode ser tão rico?] Harvard University Press, 2000, pp. 20-34.)

Cohen escreveu vários livros. Seu último grande livro tem uma importância e é de uma complexidade similar ao primeiro: Rescuing Justice and Equality [Resgatar a Justiça e a Equidade] (Harvard University Press, 2008). Como bom marxista (creio que o foi, apesar de suas próprias dúvidas e das de muitos), Cohen trata de explicar por que, na última etapa de sua vida (o que se reflete neste livro), abordou temas de filosofia moral e política, que os marxistas costumavam desdenhar.

Começa com uma anedota. Viaja em 1964 para a Tchecoslováquia e fica na casa de sua tia paterna, cujo marido (Norman Freed) era editor do World Marxist Review. Uma noite, diz, fiz-lhe uma pergunta sobre a relação entre, por um lado, a justiça e os valores morais e, por outro, a prática política comunista. Seu tio político lhe respondeu sardonicamente: “Não me fale de moralidade. Não estou interessado na moral”. Cohen explica que isto significava que a moralidade é pura fábula. Ante a insistência de Cohen, que disse que o que Freed fazia refletia um compromisso moral, este respondeu: “Não tem nada a ver com moral. Estou lutando por minha classe. Em seu desprezo pela moralidade, o tio Norman estava expressando, em forma literal, uma venerável, profunda e desastrosamente enganosa auto concepção marxista, disse Cohen. A razão mais importante da exclusão das questões morais é que o marxismo se apresentava a si mesmo, perante si mesmo, como a consciência da luta no mundo, e não como um conjunto de ideais propostos ao mundo para que este se lhes ajuste. O marxismo, explica, em contraposição ao socialismo utópico, era científico: baseava-se nos duros fatos históricos e na dura análise econômica. Essa autodescrição era em parte uma bravata, acrescenta, porque os valores de igualdade, comunidade e auto realização humana eram sem dúvida parte integral da estrutura de crenças marxistas.

Mas os marxistas não examinavam os princípios de igualdade, ou de fato nenhum outro valor ou princípio. Em troca, assinala, dedicaram sua energia intelectual à dura carapaça factual, que rodeava tais valores, às teses audaciosas explicativas da história e do capitalismo (Ibid, pp. 101-103).

Cohen continua:

“Mas agora o marxismo perdeu a maior parte de sua carapaça, sua dura concha de supostos fatos. Quase ninguém o defende na academia. Na medida em que o marxismo esteja ainda vivo – e se pode dizer que um certo tipo de marxismo está vivo, por exemplo, em trabalhos acadêmicos como os de Roemer nos EUA e Van Parijs na Bélgica – apresenta-se a si mesmo como um conjunto de valores e um conjunto de desenhos para realizar tais valores. É agora, portanto, muito menos diferente do socialismo utópico do que em algum outro momento pôde afirmar que era. Sua concha está partida e se desmancha, seu ventre débil restou exposto”. (p. 103)

Cohen descreve como se deu a perda da carapaça factual relativa à igualdade. No passado, atuavam duas tendências irresistíveis que, juntas, garantiam um futuro de igualdade material. Por um lado, a ampliação de uma classe social organizada (convertida em maioria), cuja posição social, no lado prejudicado pela desigualdade, dirigia sua luta a favor da igualdade; por outro, o desenvolvimento das forças produtivas levariam a um mundo em que todos poderíamos ter tudo o que quiséssemos, o que faria desaparecer a desigualdade. Cohen disse que esta possibilidade já não está certa, porque o planeta se rebelou e impôs limites naturais ao que se pode produzir. Por outro lado, o proletariado está deixando de ser o que era: a maioria explorada e carente da população, que levaria a doutrina do direito do trabalhador ao fruto de seu trabalho e a doutrina igualitária a coincidirem. Mas os explorados e os desprovidos deixaram de ser os mesmos e deixaram de ser maioria (inclusive no terceiro mundo, onde predomina o exército industrial de reserva).

Por isso, os valores socialistas deixaram de ter um laço com a estrutura social capitalista e, portanto, os temas de filosofia política e moral voltaram a ser importantes para o marxismo. Por essa razão Cohen se ocupava deles. No entanto, a desigualdade mundial é brutal e está aumentando.

(*) Quando editei dois números temáticos sobre pobreza, em 2003 da extinta revista Comercio Exterior (vol. 53, números 5 e 6, de maio e junho) inclui extratos de seu ensaio Igualdad de que? Sobre o bem estar, os bens e as capacidades, em que constam partes do enfoque de Sem e propõe uma rota para reconstruí-lo. Este material eu utilizei durante muitos anos em meus cursos sobre pobreza no Colégio de México.

Segunda parte: Por que não o socialismo?

Embora se trate de um pequeno livro de bolso (Why not socialism?, Princeton University Press, 2009, 83 pp.), o último que publicou em vida, e ainda que em 2001 tenha publicado um ensaio com o mesmo nome, do qual o volume é uma versão modificada, simbolicamente é muito interessante que seu último tomo seja sobre o socialismo, fechando assim o círculo iniciado com seu primeiro livro (como comentei antes, "A teoria da história de Marx: uma defesa". Vários amigos e leitores me escreveram para me informar que existe sim uma edição em espanhol (publicada na Espanha), mas não consegui encontrá-la na internet.

"Por que não o socialismo?" tem cinco capítulos. No primeiro, Cohen mostra que nas viagens de acampamento (daqui para frente acampamento) quase todos preferimos uma forma de vida socialista. No segundo torna explícitos os princípios de igualdade e comunidade, que prevalecem no socialismo. Em terceiro questiona se esses princípios, levados a escala social, tornam o socialismo desejável. No quarto, se o socialismo é viável. O livro termina com um pequeno epílogo.

Quando vamos acampar não há hierarquias entre nós e nosso propósito comum é passar bem. As instalações e as equipes de que dispomos (mesmo sendo alguns privados) estão sob controle coletivo. Há uma forma de divisão do trabalho. Nesses contextos, a maior parte das pessoas, inclusive a maior parte dos anti-igualitaristas, aceitam e dão por sensatas normas de igualdade e de reciprocidade, disse Cohen. Acrescenta que, embora possamos imaginar um acampamento baseado em regras de mercado, a maior parte das pessoas o repudiaria, o que exemplifica com eventos hipotéticos:

a)Harry é muito bom pescando, mas exige, por sua contribuição, comer apenas o melhor peixe. Os demais raciocinam corretamente e observam que não tem de compensar a boa fortuna que o tornou um bom pescador;

b) Sylvia encontra uma macieira e pede para ser recompensada com menos trabalho ou mais espaço na sua barraca de acampamento. Os demais rechaçam sua atitude.

Cohen acrescenta outros dois exemplos similares. Em todos eles, os demais repudiam e se incomodam com a cobiça dos envolvidos. Pergunta-se então se não é a forma socialista obviamente a melhor para organizar um acampamento.

Os princípios que segundo Cohen prevalecem no acampamento são os da igualdade radical (ou socialista) de oportunidades e o da comunidade. O segundo restringe a operação do primeiro, que tolera algumas desigualdades de resultado. Ele distingue três tipos de igualdade de oportunidades: a) a igualdade burguesa de oportunidades, que caracteriza (ao menos nas aspirações) a da era liberal: elimina restrições socialmente construídas (formais e informais) de status, como o de ser subalterno, negro ou, poderíamos acrescentar, mulher; b) a igualdade liberal de esquerda, que elimina, além das restrições anteriores, os obstáculos das circunstâncias sociais de nascimento e infância dos indivíduos que já então se situam em desvantagem (não escolhida). Um exemplo de políticas para criar este tipo de igualdade são as orientadas para compensar, desde a mais tenra idade, as crianças em condições carentes; c) igualdade socialista de oportunidades, que corrige, além das anteriores, as desvantagens inatas dos indivíduos que, como as anteriores, não foram escolhidas por eles. Por isso, se prevalece esta forma de igualdade de oportunidades, as diferenças de resultado refletirão somente, disse, diferenças de gosto e de escolha (especialmente entre trabalho e ócio) que não constituem desigualdades porque supõem um desfrute similar da vida.

No entanto, mais adiante acrescenta uma passagem larga e interessante, que parece contradizer o que acaba de assinalar, e na qual explica que há três formas de desigualdade consistentes com o princípio de igualdade socialista de oportunidades. O primeiro tipo é o que havia referido antes, que só reflete diferenças de gosto/escolha, e não é problemático. O segundo é o que chama escolha lamentável, aquelas que por descuido ou pouco esforço levam a uma situação de desvantagem, e o indivíduo se arrepende de suas escolhas prévias. Cohen pensa que esta forma de desigualdade geraria por si mesma, relativamente, pouca desigualdade. A desigualdade verdadeiramente preocupante é a terceira, que reflete o que os filósofos chamam de sorte de escolha. À parte a aposta direta, da qual o jogador não se arrependeria, a mais importante é o elemento de sorte de opção presente nas desigualdades de mercado, que refletem apostas sobre onde pôr seu dinheiro ou seu trabalho. (quem, por exemplo, pôs seu trabalho na indústria manufatureira ou na construção, no México em 2007, teve uma probabilidade muito maior de perder do que quem pôs o dinheiro no comércio). Cohen enfatiza que, enquanto se pode abster de fazer apostas diretas, não se pode evadir das apostas de mercado numa sociedade de mercado, pois o mercado, por assim dizer, é um cassino de que é difícil escapar, e as desigualdades que produz estão contaminadas com a injustiça. Embora as desigualdades segunda e terceira não sejam condenadas pela justiça, são no entanto repugnantes para os socialistas, quando ocorrem numa escala suficientemente grande, disse Cohen, pois contradizem o princípio de comunidade. Portanto, o princípio socialista de igualdade de oportunidade tem de ser suavizado pelo de comunidade, se a sociedade há de desenvolver o caráter socialista que torna o acampamento atrativo, acrescenta.

Ele explica o sentido de comunidade que usa: comunidade é o que as pessoas impõem aos outros e, se necessário e possível, que cuida deles. Nosso autor desenvolve em detalhe as diferenças entre a reciprocidade comunitária e a reciprocidade de mercado. A primeira é um princípio antimercantil de acordo, com o qual eu te sirvo, não pelo que posso obter em troca ao fazê-lo, mas porque tu necessitas ou queres o meu serviço, e tu, pela mesma razão serves a mim. Em troca, no mercado, o motivo imediato da atividade produtiva é tipicamente uma mescla de cobiça e medo, em proporções que mudam conforme a posição da pessoa no mercado e o caráter pessoal. No mercado, sirvo aos outros já para obter algo deles que desejo – essa é a motivação da cobiça – ou para assegurar-me de que algo que busco evitar seja evitado – essa é a motivação do medo.

Na comunidade, nega-se o caráter instrumental das relações de mercado. Na sequência, me dedicarei aos capítulos 3, 4 e ao epílogo do livro de Cohen. Adianto uma frase, assim citada da canção que Cohen cantava em ídiche, quando criança, na escola: “Se nos considerássemos uns aos outros um vizinho, um amigo, um irmão, seria um mundo maravilhoso, maravilhoso”.

(continua...)

Tradução: Katarina Peixoto