O presidente que não vai virar vaso chinês
Rede Brasil Atual
31 de dezembro de 2010 às 10:49h
“Um ex-presidente é mais ou menos como um vaso chinês: não tem utilidade nenhuma (…) Ele valeria muito se ele ficasse quieto e deixasse o futuro presidente governar o país com tranquilidade, sem dar palpite.”
Estocadas à parte, o autor da declaração acima sabe que esse desejo não irá se cumprir. Pelo contrário, quando deixar a Presidência da República, no dia 1º deste ano, Luiz Inácio Lula da Silva será recebido com festa no retorno a São Bernardo do Campo. Mais que a celebração em si, vale o simbolismo de demonstrar que não é porque Lula sai do comando do país que deixa de ser reconhecido.
Lula tampouco deixará de ser importante. Nos últimos meses, foram muitas as vezes em que o presidente fez a tal citação do vaso chinês, talvez na tentativa de se forçar a acreditar que deixará de influenciar a vida política brasileira. Lula sabe que não será assim, e mais sinceras consigo são as palavras dos últimos dias. “Deixo apenas a Presidência, mas não pense que vão se livrar de mim, porque estarei pelas ruas desse país trabalhando e lutando para melhorar a vida desse país”, reiterou na última quarta-feira (29) em Recife.
Ex-presidente diferente
Há vários fatores para acreditar que Lula será um ex-presidente distindo dos demais ainda vivos – José Sarney, Fernando Collor de Mello, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso. A taxa de aprovação em 87% segundo o Ibope e a eleição da candidata apoiada por ele são dois dos vetores inéditos na vida política brasileira que fazem crer que a vida de Lula a partir de 2011 será diferente das rotinas dos antecessores.
Por um lado, o líder petista não parece vislumbrar a possibilidade de se candidatar a cargo eletivo no futuro, seja proporcional, seja majoritário. Lula rejeitou recentemente a possibilidade de ocupar cargos diplomáticos ou mesmo ser secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), como pediu o boliviano Evo Morales. Por outro lado, discrição parece difícil a um líder tão reconhecido e com um carisma que simplesmente não pode ser apagado – continuará a existir e, de certo modo, a ofuscar os que dividam as atenções com ele.
O cientista político André Singer defendeu que as linhas estabelecidas no governo Lula, de redução da pobreza e da desigualdade, vão guiar a política brasileira nos próximos anos. O professor avalia que a continuidade dessas propostas assegura, finalmente, voltar ao padrão interrompido pelo golpe de 1964. “A agenda de diminuição da pobreza e da desigualdade do governo Lula avançou por meio de uma estranha combinação de orientações antitéticas: de um lado, manteve linhas de conduta do receituário neoliberal e, de outro, adotou mecanismos de uma plataforma desenvolvimentista”, argumentou Singer em artigo publicado na edição de outubro da revista Piauí.
Isso explicaria, em parte, a migração da base de apoio de Lula – e do PT – das classes médias para as camadas mais pobres. Nesse aspecto, o presidente é um dos poucos políticos brasileiros ainda capaz de reunir massas em diferentes partes do país. Foram poucos os comícios de candidatos neste ano que não tinham Lula no palanque.
Nas últimas semanas de governo, por onde passa, Lula ainda reúne multidões que querem se despedir do líder. Foi assim no dia 23, quando foi realizado em São Paulo o último Natal com os catadores de materiais recicláveis e a população de rua, uma tradição mantida ao longo dos oito anos de governo e à qual Dilma Rousseff promete dar continuidade. O galpão lotado na zona norte de São Paulo abrigava verdadeiros fãs do presidente. “O senhor não esqueceu suas raízes, não esqueceu o que prometeu a seu povo”, lembrava a catadora Maria Lúcia Santos Pereira.
Desencarnar
Não é todo presidente que tem um povo que aceite ser chamado de “seu”. É a primeira vez em muitas décadas que um chefe de Estado brasileiro tem seu nome associado ao “ismo”: não houve itamarismo, collorismo nem fernandismo, mas há um lulismo que, como ressalta Singer, continuará presente mesmo que já não seja o ex-metalúrgico a ocupar o Planalto.
“Eu quero voltar ao Pacaembu para ver jogo do Corinthians, vestido de torcedor, encontrar os meus companheiros do sindicato e tomar uma cerveja, eu quero ser um homem comum…”, confessou em entrevista ao veterano jornalista Ricardo Kotscho, publicada na edição de dezembro da revista Brasileiros.
Kotscho, assessor do ex-sindicalista nas campanhas de 1989, 1994 e 2002, ressaltou por sua vez, em conversa com a Rede Brasil Atual, pouco antes do primeiro turno das eleições, que Lula era uma novidade na política brasileira quando apareceu e que hoje, três décadas depois, continua sendo algo novo, uma estranha soma de líder de massas e líder político, uma espécie de caminho do meio entre a esquerda ortodoxa e os movimentos pelegos.
“Lula é uma figura que alguém no futuro vai ter que explicar. Foi uma coisa absolutamente nova. Tem poucos casos no mundo de uma história assim. O Lula se tornou um líder mundial, reconhecido por todo mundo”, resumiu Kotscho.
Está aí um dos caminhos do presidente ao se “desencarnar” do mandato: já deu várias declarações no sentido de usar seu prestígio internacional para ajudar nações pobres.
Como disse Kotscho, só com o tempo será possível ter a dimensão correta – nem maior nem menor – da figura de Lula. Em algumas semanas, no entanto, saberemos o que o presidente fará com seu prestígio. O certo é que não ficará guardado no canto da sala, feito vaso chinês.
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